Esquadrão da morte Investigação concluiu que PMs usaram fazenda para matar e ocultar cadáveres
Policiais militares mataram pessoas a pedido de fazendeiros e, depois, usaram propriedade rural para executar e desovar desafetos, segundo investigação

José Luís Figueiredo ficou paranoico após ser vítima de tentativas de assassinato, em uma guerra contra vizinhos. Via pistoleiros por todos os lados. E isso levou o dono da Fazenda Porto Mesquita, em Angueretá, distrito de Curvelo, a formar um pequeno exército de jagunços, que incluía parentes e policiais militares. Essa foi a conclusão de investigação iniciada após a descoberta de 19 crânios em duas cisternas da propriedade rural, em 1975.
Ainda hoje moradores da região contam que Zé Figueiredo, como era conhecido o fazendeiro, passou a ver qualquer estranho como inimigo. Por isso, quem não morasse na região e por lá aparecesse repentinamente poderia acabar sequestrado, executado a tiro e jogado em uma das cisternas.
“Zé Figueiredo ficou meio biruta. Ele brigou muito”, ressalta João Gonçalves Martins, 81 anos, também fazendeiro, amigo e ex-vizinho de Zé Figueiredo. Após levar tiros, Figueiredo morou na propriedade de Martins. “Ele dormia com um revólver embaixo do travesseiro. Eu ia lá de madrugada e tirava as balas. Tinha medo dele fazer bobagem”, conta Martins.
João Martins se refere a Zé Figueiredo como um homem valente, mas de bom coração. “Ele ficou rico com a balsa e famoso por ser caridoso. Pagava os enterros dos moradores da região.”
No entanto, sobre as ossadas encontradas na propriedade do amigo, Martins diz se lembrar de pouca coisa e alega que tudo foi uma briga familiar. “Nessa confusão da cisterna, da briga do Zé Figueiredo, tinha primos dos dois lados.”
Amigos e familiares de Zé Figueiredo sempre disseram que ele perdeu completamente a razão após levar um tiro na boca. A bala ficou alojada. Médicos não fizeram cirurgia por risco de morte.
Após o encontro das ossadas, Figueiredo ficou preso por três dias. Conseguiu habeas corpus para responder às ações em liberdade. Em depoimentos, alegou amnésia. Por fim, nunca cumpriu pena.
Ex-cabo e ex-detentos denunciaram sumiços da cadeia de Sete Lagoas
As investigações apontaram a antiga rixa de Zé Figueiredo com um vizinho como origem da matança, mas não atribuíram todas as mortes a ela. Inquéritos da Polícia Civil mostraram que, após ao menos três assassinatos ligados diretamente ao dono da Porto Mesquita, policiais militares que agiam como jagunços receberam autorização para usar suas terras como ponto de desova. Lá teriam sido jogadas pessoas detidas na cadeia de Sete Lagoas, sem acusação formal, e desafetos dos PMs.
Relatório da Polícia Civil sobre o caso conclui que ao menos 12 pessoas detidas na cadeia de Sete Lagoas ao longo de 1969, mas que não tiveram o registro de entrada, de lá saíram na companhia de policiais militares e nunca mais foram vistas. Da maioria, só souberam os apelidos, citados por testemunhas. Mas houve outras que acabaram identificadas graças à repercussão do encontro das ossadas na Porto Mesquita.
Duas dessas testemunhas eram ex-detentos da cadeia de Sete Lagoas. Outra era um cabo da PM que trabalhou no prédio no período dos sumiços dos presos. Um dos ex-detentos que depôs tinha apenas 15 anos quando foi preso acusado de tramar um atentado contra Zé Figueiredo. Ele havia trabalhado como carvoeiro na Porto Mesquita. E sempre negou qualquer intenção de matar o ex-patrão.
O rapaz e as outras testemunhas citaram Levi, Roberto, Genuíno, Sarapó, Papudo, Canário Pardo, Sangue Puro, Zé Pinga, Ladinho Claro e Ladinho Escuro como alguns dos presos que desapareceram após serem levados por PMs. Sangue Puro e Canário Pardo eram andarilhos. Levi, Roberto, Genuíno, Sarapó, Canário Pardo e Ladinho Escuro foram identificados após familiares, que os davam como desaparecidos, procurarem a Polícia Civil em busca de respostas. São eles:
Edson da Conceição Santana, o Sarapó, desapareceu, aos 18 anos, após entrar na cadeia de Sete Lagoas, após ser preso algumas vezes por brigas. Foi internado em Belo Horizonte, sendo submetido a tratamentos de choque, por causa de “doença nervosa”. Recebeu alta, voltou para Sete Lagoas, foi preso. Em 15 de abril de 1969, PMs disseram à família que ele havia ido para São Paulo, sem detalhes. Nunca mais tiveram notícia dele.
Geraldo Pereira Cruz, o Ladinho Claro, fazia pequenos furtos para manter o vício em álcool, segundo parentes. Bom de bola, ficou famoso nos campos de pelada com os dribles secos e o potente chute de esquerda. Trabalhou como engraxate no centro de Sete Lagoas. Sumiu repentinamente em 1968, após passagens pela cadeia.
Levi Ramos Ribeiro nasceu em Pompéu e se mudou para Sete Lagoas ainda jovem, onde casou e teve um filho. Foi dado como desaparecido em abril de 1974, quando estava detido na cadeia de Sete Lagoas sem acusação formal. Era amigo de policiais e empresários. Parentes disseram que ele “sabia demais” sobre crimes cometidos por essas pessoas.
Raimundo Pereira, o Genuíno, desapareceu em 1968, aos 23 anos, após dias detido na cadeia de Sete Lagoas por causa de uma briga. Nunca teve condenação. PMs disseram a parentes de Genuíno que ele foi colocado em um caminhão com outros presos para trabalhar em uma fazenda.
Roberto Pereira Costa sumiu em Sete Lagoas, aos 18 anos, em 1968, quando trabalhava como sapateiro. Havia sido detido por pequenos furtos e brigas. Na última vez em que foi visto com vida, foi levado à força de casa por um PM que se identificou como cabo Madureira, dizendo que o levaria para um lugar conhecido como Ilhas das Cobras.Testemunhas denunciaram propinas a grupo de extermínio
Na investigação da Chacina de Angueretá, policiais civis disseram que fazendeiros de Pompéu e Curvelo financiaram PMs para manter criminosos longe das propriedades rurais, matando e jogando os corpos nas cisternas quem fosse apontado como suspeito de furto em alguma delas.
Em troca, os policiais recebiam “presentes”, que iam de porcos, bois a carro e moto. Um deles teria ganho um bar, com todos os móveis e utensílios necessários para o funcionamento do estabelecimento.
Além de homens com passagens pela cadeia de Sete Lagoas, houve relatos de que entre as vítimas havia caixeiros viajantes; turistas atraídos pelas grutas da região e pelo rio Paraopeba; homens nascidos nas redondezas que, morando longe, visitavam seus parentes.
Mas, assim como sobre a maioria dos 19 crânios retirados das cisternas, nunca identificados, restaram dúvidas e especulações.Após a descoberta das ossadas, a Polícia Civil recebeu diversas denúncias, inclusive a de que os pais e seus dois filhos pequenos poderiam estar entre as vítimas, o que nunca foi provado.
“Aqui não tinha televisão nem rádio. A gente só ficava sabendo o que um passava para o outro. O povo tinha medo. Falavam que pegavam os menininhos e matavam”, conta Maria Isabel Fernandes, 69 anos, que sempre morou em Angueretá, onde trabalhou como carvoeira e doméstica em fazendas da região.
Policiais apontados como jagunços e responsáveis por desova
Entre os policiais citados como jagunços de Zé Figueiredo em diferentes inquéritos e em entrevistas a veículos de imprensa, estavam o cabo José Henrique Madureira, o escrivão José Geraldo do Espírito Santo e os soldados Antônio Pereira Chaves e José Oliveira Castro. Eles foram investigados como responsáveis pelas mortes das pessoas que tiveram as ossadas encontradas nas cisternas da Fazenda Porto Mesquita.
Em depoimentos, confirmaram a proximidade com Zé Figueiredo e que conheceram algumas das possíveis vítimas da chacina, mas negaram ter cometido crimes.
José Castro, que tinha 37 anos em 1975 e trabalhou em Sete Lagoas de 1969 a 1971, admitiu ter respondido processos por homicídio, inclusive com prisão preventiva, mas frisou que nunca foi condenado. Ele e Madureira namoraram filhas de Zé Figueiredo – o fazendeiro teve seis filhos, um homem e cinco mulheres.
Já o soldado Chaves, que tinha 38 anos de idade e sete de PM quando as ossadas foram achadas em Angueretá, disse ter conhecido Zé Figueiredo em 1966, por causa de um atentado sofrido pelo fazendeiro.
Chaves afirmou que só participou das investigações sobre o episódio, fazendo diligências nas terras de Figueiredo, apesar de não ser policial civil e ser lotado em Sete Lagoas. Confirmou ter sido alvo de inquérito em 1971 por espancamentos e falsificação de carteiras de habilitação, mas acabou absolvido.
Madureira era o chefe do destacamento da PM em Sete Lagoas. Ele e Chaves comandavam a cadeia da cidade.
À época da apuração da série de reportagens sobre a Chacina de Angueretá, apenas Chaves estava vivo. Morava em Sete Lagoas. Ele se aposentou pelo SAAE. Ganhou um cargo na empresa municipal de água e esgoto no primeiro mandato do prefeito Marcelo Cecé Vasconcelos de Oliveira, amigo de Zé Figueiredo.
A equipe de O TEMPO tentou uma entrevista com Chaves por meio de amigos dele, mas não obteve retorno até a publicação deste conteúdo.
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