Pesquisas apontam que pessoas mais pobres são as que mais fazem doações

Pesquisas apontam que pessoas mais pobres são as que mais fazem doações

Por LETÍCIA FONTES

 

Carro de som para conscientizar a população. Voluntários pelas ruas. Pessoas se organizando para arrumar cestas básicas e distribuí-las. Incontáveis vaquinhas online. A lista é extensa. Mas o que leva uma pessoa a ajudar um completo desconhecido, do outro lado do país, do outro lado do mundo? O que leva uma pessoa a se comover com a história do outro?

Um levantamento do Instituto de Desenvolvimento e Investimento Social descobriu que o Brasil abriga um povo especialmente solidário. Três em cada quatro brasileiros acham importante fazer a sua parte por uma sociedade melhor. E quanto mais pobre, mais solidário – pode ser surpreendente para muita gente saber que, exatamente nos lugares em que a necessidade é maior, é onde também o coração se abre mais.

“Quem tem menos, entende a importância de doar, porque já passou por aquela situação. Qualquer quilo, roupa ou água para outra pessoa vai ser mais importante do que para ela mesma”, explica o presidente da Central Única das Favelas (Cufa) em Minas Gerais, Francis Santos. 

O ativista de 41 anos mora hoje no Morro do Papagaio, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, mas passou a infância no aglomerado Alto Vera Cruz, na região Leste da capital, com a mãe. Na última semana, ele entregou uma doação de mais de 280 mil ovos por mais de 200 favelas da região metropolitana. A entrega foi especial por um motivo: “Nunca passei fome, porque na favela tem a tradição do vizinho batendo na porta com o pouquinho que tem, mas me lembro várias vezes de estar cansado de comer tudo com farinha. Na minha infância, tudo que eu queria era um ovo para um almoço diferente. Pedi minha mãe uma vez dois ovos, ela trabalhava em dois lugares. Com muito custo ela meu deu o ovo depois de 15 dias”, conta emocionado.

“Hoje poder dar um ovo para alguém é a certeza de que eu consegui dar certo nessa vida”, desabafa o ativista, que atualmente está estudando relações internacionais. 

Uma pesquisa feita pela Central Única das Favelas (Cufa) e pelo Instituto Locomotiva apontou que as pessoas mais pobres fazem mais doações aos necessitados, neste momento de pandemia, em comparação com a população de maior renda.

A pesquisa, feita com 3.321 moradores de 239 favelas de todo Brasil, mostra que 80% das famílias estão vivendo com menos renda e, mesmo assim, são mais solidárias. Elas estão doando mais que o restante dos brasileiros. Seis entre dez moradores pobres já fizeram algum tipo de doação durante a pandemia.

Esse é o caso da dona de casa Sara Alves, 45. Atualmente desempregada, Sara começou a fazer marmita para vender durante a pandemia. E o restinho que sobra ela divide com os vizinhos na ocupação onde mora, no Barreiro. “Geralmente as ajudas vêm de onde a gente menos espera. Foi assim a minha vida inteira. Alguém me ajudou lá atrás, e eu tenho esse trabalho dentro de mim, preciso retribuir”, afirma. 

Social
Para a psicanalista Yuska Lima, o nível de doação e solidariedade está muito mais ligado à cultura do que à riqueza. Segundo a especialista, apesar de nada homogêneas, a maioria das favelas têm sua maior característica sociocultural e ancestral intacta: a valorização das alianças, da comunidade, o entendimento de que viver é um ato que se faz apenas no coletivo.

“Ser solidário é um recurso de sobrevivência para qualquer ser humano. E isso está muito ligado a um fator cultural. Você precisa do outro para existir. No caso de pessoas mais vulneráveis, você sempre precisa de laços comunitários para ocupar o espaço do dinheiro que você não tem, dos recursos necessários que a classe média tem”, explica. 

De acordo com a psicanalista, os centros urbanos precisam começar a olhar para a vida nas favelas como um espelho, com olhos de quem quer aprender aspectos como a sociabilidade, as estratégias, as invenções e a forma de construção de soluções coletivas. 

“A solidariedade é um recurso do ser humano para evitar a solidão. Contribuir para a vida de alguém traz estímulos de realização e bem-estar que é sentido no corpo e no cérebro, é um dos maiores sentimentos de prazer. Ser solidário é o que nos torna humanos”. 

Desconfiança ainda é uma barreira
Apesar de o ser humano ser naturalmente solidário, no dia a dia o Brasil está longe de ser o país mais generoso. Amargando a 122ª posição entre 146 países que fazem parte do último World Giving Index (2018), conhecido como o ranking global da solidariedade, o brasileiro age mais nas emergências, como tragédias naturais, segundo os especialistas. 

E o problema não é econômico: à nossa frente estão não apenas todas as nações desenvolvidas, como esperado, mas também os vizinhos sul-americanos e países muito mais pobres, como Haiti e Libéria.

Segundo a psicanalista Yusca Lima, questões culturais e estruturais pesam na hora de apoiar uma causa. No Brasil, a maior barreira psicológica está na desconfiança: para onde vai o dinheiro? Nossas infinitas decepções com a qualidade e a transparência de serviços públicos e privados nos ensinam, desde sempre, a ter dois pés atrás diante de qualquer instituição. Resultado: 44% dos brasileiros acham que a maior parte das ONGs não é confiável, segundo a Pesquisa Doação Brasil.

“A percepção de que o país é corrupto desestimula as pessoas, e as políticas públicas ficam mais defasadas. O brasileiro é empático, tem muita gente solidária e com boas ideias, mas falta visibilidade para isso. Quando se tem leis como a Rouanet, que são essenciais para o fomento artístico, mas tem escândalos de corrupção e caixa 2, você enfraquece programas e toda uma estrutura governamental”, ressalta. 

“É preciso construir uma política pública que estimule a coletividade, que estimule a fraternidade, que estimule a capacidade de mediação de conflitos de uma forma que não seja a violência e a ignorância. Ninguém aqui vai conseguir viver sem o outro”, completa Yusca. 

Como ajudar?

Preparamos uma pequena lista de lugares que precisam de ajuda, especialmente agora, durante a pandemia. E a maioria deles você pode ajudar sem precisar sequer furar a quarentena. Confira!

Sem-teto - Pelo fundo de emergência para sem-teto afetados pelo coronavírus, é possível realizar doações que serão usadas para a compra de alimentos, álcool em gel e máscaras e distribuídos nas periferias de cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Alagoas, Pernambuco, Sergipe, Ceará, Roraima, Goiás e no Distrito Federal. As doações podem ser feitas pelo site. 

Mães que vivem em favelas - A Central Única das favelas (Cufa) tem distribuído uma renda mínima básica para milhares de mães que vivem em favelas de todo o país. As doações acontecem por meio de uma vaquinha online.

Cestas básicas - O movimento realiza entrega de cestas básicas em comunidades vulneráveis da região metropolitana de Belo Horizonte. Quem quiser e puder ajudar pode doar qualquer quantia pelo site.

Doação de sangue - Os Hemocentros de todo o país estão necessitando de doações de sangue. É preciso ir até um dos 32 hemocentros ou 500 serviços de hemoterapia espalhados pelo país. Em alguns lugares, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, é possível agendar antecipadamente um horário, para evitar aglomerações. Podem doar sangue pessoas entre 16 e 69 anos, sendo que para os menores de 18 anos é necessário consentimento dos responsáveis. Para quem tem entre 60 e 69 anos, só é permitido doar se a pessoa já tiver doado alguma vez antes. É preciso pesar no mínimo 50 kg e estar em bom estado de saúde.

Fundo Emergencial para a Saúde - A iniciativa tem recebido doações que serão distribuídas a hospitais públicos e instituições de ciência que estão na linha de frente do combate ao coronavírus, como a Fiocruz. É possível fazer doação em qualquer quantia por meio da plataforma 

Apoio a restaurantes - Através da plataforma é possível comprar um voucher por R$ 50 que valerá R$ 100 até 31 de dezembro para ser usado no restaurante escolhido, quando a quarentena acabar. Os outros R$ 50 serão bancados pela cerveja Stella Artois. A iniciativa já está ajudando os estabelecimentos a pagarem os salários de seus funcionários, contribuindo para redução nas demissões. Para mais informações, acesse o site.

Entidades e ONGs ganham espaço para divulgar ações
Para que iniciativas como essas sejam cada vez mais fortes, principalmente neste momento de crise, o jornal O TEMPO lançou, em seu portal e também no seu perfil do Instagram, o projeto Conexão do Bem. Por meio dos milhões de internautas e espectadores alcançados, a proposta é divulgar entidades e ONGs que necessitam de ajuda para desenvolver trabalhos voluntários.