Divergência na aplicação de Lei Paulo Gustavo paralisa produções de animação em Minas

Entre elas está "A Marcha dos Girassóis", premiada no Festival Internacional

Divergência na aplicação de Lei Paulo Gustavo paralisa produções de animação em Minas
Arte-conceito de "A Marcha dos Girassóis", que deverá ser o primeiro stop-motion de Minas _Foto: ERICK RICCO

O Festival Internacional de Roterdã terminou no domingo com um prêmio para a animação mineira "A Marcha dos Girassóis", de Erick Ricco, que receberá 5.000 euros para serviços de pós-produção. É o primeiro longa-metragem do Estado feito totalmente em stop-motion - técnica usada em produções como "O Estranho Mundo de Jack" e "A Fuga das Galinhas". Ou melhor, "pode ser" o primeiro, já que o trabalho está paralisado, à espera dos R$ 3,5 milhões aprovados em março de 2024 pela Lei Paulo Gustavo (LPG)."Estamos muito felizes em receber este prêmio. Mas já estávamos só de sermos selecionados para o CineMart (voltado para projetos em desenvolvimento), que é bem concorrido, com projetos do mundo inteiro querendo entrar aqui. Quem vem para cá com as obras ainda em produção tenta agregar parceiros. E é o que estamos fazendo", diz Ricco, com a voz rouca devido ao intenso frio da cidade holandesa. Mas ele não esconde a preocupação com a situação da LPG estadual, contestada na Justiça por um dos participantes na categoria.

 

O que era para ser uma conquista da animação mineira, que vem ganhando cada vez mais espaço no cenário nacional, com filmes como "Chef Jack: O Cozinheiro Aventureiro" e "Placa-Mãe" e a série "Cosmo, o Cosmonauta", acabou recebendo contornos de drama policial com a suspensão do pagamento de cerca de R$ 10 milhões, previstos pela subcategoria 5 do edital e que seriam destinados a três longas do formato, selecionados no primeiro semestre do ano passado. "É algo muito sutil, específico, e acredito que, dentro do Judiciário, eles não têm tanto conhecimento do edital. Quem ler a instrução normativa da Ancine, vai ficar claro que o que se está alegando no processo, ao nosso ver, é absurdo. Primeiramente, até achei que não iria durar este mandado. Aí concederam a liminar a favor deles e contratei um advogado, até pensando que isso poderia agilizar e dar peso", detalha.

 

Abacatu acha bizarro o fato de o impetrante não ser o proponente do projeto de "eHumans". "Ele não é da empresa proponente, não fazendo parte do quadro societário. Por que não foi a empresa que entrou com o mandado? Agora estamos nessa espera. O problema é que o Judiciário brasileiro tem essa morosidade. Cada ação demora meses, nos deixando refém dessa espera", salienta.

 

Para ele, a grande vantagem da Lei Paulo Gustavo era justamente possibilitar uma quantidade grande de postos de trabalho, "o que realmente foi acontecendo com outras categorias". Cada longa de animação, calcula Abacatu, gera cerca de 100 empregos. "O que era para ser uma ação emergencial, para incentivar e garantir trabalho para muita gente. Eu mesmo tive que me adaptar, porque estava preparado para começar a produção", afirma."Já havíamos feito todo um planejamento de produção. Como não é um projeto pequeno, não é o negócio que você fala que irá parar uma semana. É um projeto que iria durar quase dois anos", sublinha. "Treze Sonhos" foi escrito há dez anos, inspirado em sonhos reais do realizador. "Eles são apresentados como capítulos, sendo cada um animado por pessoas diferentes. Haverá uma quantidade diversa de técnicas de animação", adianta.

 

"A Secult tratou a cota como uma vaga qualquer"

Uma das razões para a confusão sobre a regra de cotas, de acordo com Ricardo Targino, remonta à época da criação do edital da Lei Paulo Gustavo, aprovada pelo Congresso Nacional em 2022. O governo vetou a lei, transformando-a em medida provisória, com os orçamentos sendo aplicados muito posteriormente. Decisão que foi questionada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com o Congresso derrubando o veto e retornando à proposta original.

 

Ele explica que entrou com o mandado, mesmo não sendo o proponente, porque a lei dos direitos autorais no Brasil confere ao diretor da obra audiovisual direitos patrimoniais e morais. "Essa legislação me permite questionar, em qualquer instância, qualquer ato que seja praticado contra a obra. Apesar de sermos considerados um dos piores países do mundo para direitos do autor, ela nos garante questionar qualquer ato que repercuta em prejuízo do autor".Outra razão é o fato de ser negro e, segundo ele, a Secult informou que, dentro da categoria de animação, não havia projeto de pessoas negras. "O edital atrelou às cotas a maioria do quadro societário da empresa. E a empresa que faz o filme não tinha essa maioria, apesar de o projeto ser de uma pessoa negra. Quem assume as responsabilidades sou eu. Você não pode desvincular o autor de sua obra em hipótese nenhuma", assevera.

 

Ele alerta que a Secult tratou a cota como uma vaga qualquer. "É preciso lembrar que cota é uma vaga reservada. A pessoa que pode sentar a b... nesta cadeira tem que ser comprovado que tem direito a estar no grupo. Quando falamos de ordem de classificação para cotas, não estamos falando de ampla concorrência. O item 3.4 do edital é claríssimo, dizendo que, quando não houver inscritos dentro de um grupo, determinada cota será preenchida de acordo com a ordem de classificação".

 

Desta forma, explica, uma vaga para cotas só pode ser revertida para ampla concorrência se não houver ninguém concorrendo a ela dentro de todos os grupos, englobando aí negros, mulheres, LGBTQIAPN+, deficientes e maiores de 65 anos. "Não é tolerável, havendo inscritos diversos grupos, das três propostas classificadas, nenhuma delas seja optante de cota de nenhum grupo. Se houvesse ali uma mulher, um deficiente ou de qualquer outro grupo, não haveria um mandado".Targino observa que o Judiciário tem "ficado distante em relação a questões ligadas a concursos e editais, por achar que o poder tem independência, mas nesse caso aqui era gritante". O fato, sublinha, se torna ainda preocupante ao se verificar, após a aceitação da liminar, que a Secult descumpriu a ordem judicial, manteve o processo de habilitação e realizou os depósitos.

 

O cineasta salienta que não está brigando pela terceira vaga da categoria, mas, sim, por ser uma política de estímulo, a primeira vaga que deveria ser classificada seria a dos grupos. "É preciso dizer que, pela primeira vez no país, tivemos um sistema de reparação, colocado desde a origem, com o protagonismo de mulheres, negros, indígenas. Tudo isso está no entendimento geral de política de ação afirmativa", comenta.

 

Se for preciso, garante Targino, ele irá até o Supremo Tribunal Federal, "porque o que está em jogo é a política de ação afirmativa de uma sociedade que se estruturou com base em processos de escravidão e terá que fazer a reparação, já que é isso o que determina a democracia". Ainda que não seja a proposta dele a ficar com a vaga de cota, por algum motivo, "quem sentar nesta cadeira terá que ser destes grupos".