CHACINA DE ANGUERETÁ Documento traz confissão de fazendeiro sobre matança ocorrida há 50 anos, na ditadura, e ainda impune
Reportagem de O TEMPO revela depoimento sobre assassinatos e desova em fazenda onde foram encontrados 19 crânios, há 50 anos; ninguém nunca foi condenado

Depois de O TEMPO revelar os mistérios da Chacina de Angueretá, a equipe do jornal teve acesso à cópia da íntegra de um depoimento assinado pelo fazendeiro José Luís Figueiredo, o Zé Figueiredo. Ele confessou participação na matança descoberta há 50 anos, após bombeiros retirarem 19 crânios de duas cisternas de uma fazenda de Angueretá, distrito de Curvelo, na região Central de Minas Gerais.A propriedade pertencia a Figueiredo. Havia evidências de mais ossadas naqueles buracos, em outros pontos do povoado e no rio Paraopeba, a 100 km de Belo Horizonte. Mas ordens superiores interromperam a investigação, quando a Polícia Civil apontava fazendeiros e policiais como executores. As ossadas não foram identificadas. Ninguém foi sentenciado pelo conjunto de crimes. Era época da ditadura militar.Em 1975, após o encontro dos crânios, Zé Figueiredo, então com 63 anos, depôs na presença de um delegado, um escrivão, um promotor de Justiça, um policial militar e duas testemunhas. Ele confirmou o uso de suas terras para execuções e desovas. Disse ter dado dinheiro a policiais em troca de proteção. E contou em detalhes como tudo começou com uma desavença envolvendo a balsa controlada por ele.
Figueiredo era dono da Fazenda Porto Mesquita, margeada pelo Paraopeba e onde ficava um dos pontos de ligação da balsa e as cisternas com os 19 crânios. A embarcação foi construída em 1964, com dinheiro da Cia. Ferro Brasileiro. Localizada em Caeté, ela dependia do carvão feito das árvores do cerrado para alimentar seus fornos. Sem ponte sobre o Paraopeba, a viagem de caminhão entre Pompéu e Caeté levava um dia e meio. Com a balsa, diminuiu para um dia. Mas a Ferro Brasileiro exigiu que a balsa só atendesse quem levava carvão para ela. Além disso, Figueiredo cobrava uma taxa pela travessia. Contudo, segundo o fazendeiro, em um dia de dezembro de 1964, que não soube precisar, dois irmãos, Jair e Moacir Afonso dos Reis, chegaram à beira do rio, do lado de Pompéu, dirigindo dois caminhões carregados de carvão que seriam entregues a uma siderúrgica de Sete Lagoas, a 55km. Figueiredo disse que abriria uma exceção apenas naquela travessia.
Contrariados, irmãos teriam colocado fogo na balsa
Os irmãos voltaram na semana seguinte com os caminhões e cargas destinados à siderúrgica setelagoana. Figueiredo não estava no local dessa vez. Os caminhões foram barrados por dois funcionários da balsa. Jair e Moacir responderam que, “já que não poderiam passar, acabariam com a barca de um jeito ou de outro”.
Na madrugada de 19 de janeiro de 1966, a balsa desceu o rio pegando fogo. As águas do rio impediram a destruição. Demorou quase um mês para ela voltar à ativa. Figueiredo culpou Jair e o irmão. O fazendeiro contou que, dias depois, quando estava em uma caminhonete dirigida por um amigo, no centro de Sete Lagoas, viu Moacir, que lhe perguntou, em tom de deboche, “que dia aquele trem [a balsa] lá dá passagem?”. Figueiredo saiu da caminhonete e deu um tapa na cara de Moacir. Houve troca de tapas e socos, com o adversário perdendo um dente.
A partir de então, Figueiredo, conforme seu depoimento, passou a ouvir rumores da “insatisfação” de Moacir. Por isso decidiu se “prevenir”, andando armado.
Tiroteio e morte no centro de Pompéu
Em 18 de julho de 1966, dia de Corpus Christi, após reunião em Pompéu para tratar da criação da cooperativa de leite daquela cidade, Zé Figueiredo e o filho foram almoçar num bar. Quando tomava um refrigerante, sentado à mesa, o fazendeiro recebeu um alerta de dois amigos. “Avisaram que havia quatro indivíduos do lado de fora, sendo Moacir e três irmãos, para um acerto de contas”, disse Figueiredo em depoimento. Ao sair do bar, ele recebeu um tiro de Lair Afonso dos Reis, o Lili Cachoeira. Mesmo com uma bala na clavícula, Figueiredo sacou seu revólver Smith & Wesson calibre .32 e fez dois disparos contra Lili, que morreu seis horas depois.
Figueiredo fugiu. Ele se apresentou dias depois, com advogado, na delegacia de Curvelo. Sequer se tornou réu e enfrentou um júri. O promotor do caso aceitou a alegação de legítima defesa.
Lili era sobrinho de Gabriel Cazulo, dono da fazenda que ficava na outra margem do rio Paraopeba. Segundo Figueiredo, Cazulo também queria sua morte, para vingar Lili. Por isso, assim como Moacir Afonso dos Reis, contratou pistoleiros, que agiriam um ano depois, ainda conforme o depoimento de Figueiredo, agora revelado por O TEMPO.
Cabo contratado como investigador
Zé Figueiredo levou um tiro na boca em 1967, novamente em um feriado de Corpus Christi, durante uma procissão. O fazendeiro narrou o episódio em depoimento prestado em 1975.
Um ano após ser baleado por Lili Cachoeira e revidar com tiros que mataram o oponente, Figueiredo foi surpreendido em sua casa, em Sete Lagoas. Bateram à porta e, ao abri-la, viu “um sujeito moreno, com uma meia de mulher na cabeça”, que disparou um tiro.
A bala acertou a boca de Figueiredo, que ainda teve forças para se “atracar” com o desconhecido, sacar seu revólver calibre .32 e também atirar. Mas não o acertou. O homem fugiu. Gabriel Cazulo, que tinha uma fazenda vizinha à de Figueiredo, foi indiciado como mandante do crime. Ficou preso. Assim como no primeiro caso, um médico conseguiu extrair a bala da segunda tentativa de homicídio de Figueiredo. Ele fez questão de guardar o projétil em casa, contou em depoimento. Disse também que decidiu contratar o cabo José Henrique Madureira, que chefiava a cadeia de Sete Lagoas e já era seu amigo, como uma espécie de detetive e segurança particular.
Logo após o segundo atentado, Madureira entregou a Figueiredo uma fita cassete dizendo que continha o depoimento informal de um adolescente infrator. O menino teria afirmado ter recebido proposta de um fazendeiro para assumir a autoria do tiro na boca de Figueiredo. No depoimento, Figueiredo afirmou manter a fita em casa e ser necessário averiguar tal informação.
O fazendeiro confirmou ter ido com o cabo, “a título de passeio”, ao centro de internação de menores infratores de Sete Lagoas para uma “visita coletiva”, sem detalhar o que de fato fez. Em seguida, afirmou viver “em permanente vigília para não morrer, a qualquer momento, assassinado”. Por isso chegou a “dar escaramuças em diversos indivíduos estranhos” que passavam perto da sua fazenda. A polícias Civil e Militar de Minas foram procuradas desde a apuração da série de reportagens sobre Angueretá. Em curta nota, a Civil pediu para procurar o Poder Judiciário. A equipe de O TEMPO teve acesso a documentos guardados em arquivos públicos. Já a PM pediu mais tempo para responder às questões do jornal. Nossas plataformas seguirão abertas para manifestações dos citados.
Quem teve um parente ou instituição citado, quer ser ouvido ou tem mais informações sobre os crimes em Angueretá pode entrar em contato pelo e-mail renato.costa@otempo.com.br
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